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  • Zião Dionísio

5 Perguntas para Hugo Reis sobre Música e Psicologia



Iririu! Nessa edição conversei com Hugo Reis, morador da cidade de Lins (SP), psicólogo, músico, integrante das bandas O Estrangeiro, Violeta Magenta, Sartriana, Sat Chit Änanda… e também um amigo querido. Boa leitura :)


1. Iririu mister!! Valeu por topar participar dessa edição de "5 Perguntas" ^.^


Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari dizem que:


"A música é atravessada por blocos de infância e de feminilidade. A música é atravessada por todas as minorias e, no entanto, compõe uma potência imensa. Ritornelos de crianças, de mulheres, de etnias, de  territórios, de amor e de destruição: nascimento do ritmo."


Então, pra começar, quero te perguntar: como a música passa por você e te atravessa?


É engraçado quando uma pergunta revela nossa pouca reflexão sobre o óbvio... a música e a ideia dos atravessamentos são tão presentes na minha vida, mas nunca parei para refletir sobre os atravessamentos da música em mim...


Assim, em um curto olhar, consigo pensar em duas maneiras de atravessamento; uma delas mais concreta e outra mais abstrata.


A começar pela concreta... e com concreta quero dizer "fora da minha cabeça"... percebo que a música tem um papel desinibitório e evocativo que aniquila uma ideia de rostidade... o atravessamento, esse choque entre consciência e mundo em forma de música permite o acesso a um modo muito menos normatizado de ser... na minha experiência enquanto homem é notório justamente o que Deleuze e Guattari tratam nesta citação... a música acessa e meu corpo veicula a criança, a mulher... a emoção, o choro, a dança... tudo em manifestações que deixam claro o estar sob efeito da música, atravessado por ela.


É engraçado, pois em dias de show (em que vou tocar), em dias em que a música estará presente, eu me permito um vestuário muito mais "dúbio", sexualmente ambíguo... escrevendo agora percebo a licença concedida à mulher em potencial que coexiste sufocada nessa personificação doutrinada do eu.


Por outro lado, a forma abstrata de atravessamento se dá em minha consciência e evoca a ideia de espírito do tempo... a música me marca muito neste sentido, é o atravessamento do espírito de um tempo que sinto... não necessariamente o tempo da composição da obra, mas o tempo que ela despeja em mim... por exemplo o álbum Tree etc. (Naran Ratan) me permite vivenciar a Idade Média, o Feudalismo... me sinto de fato lá... Refuge (Devendra Banhart e Noah Georgesen) me leva a um tempo confuso em que não sei dizer se sou um homo sapiens ou uma ameba boiando... esses álbuns me fazem sonhar... me conectam uma ancestralidade... é incrível!


Nos dois casos é interessante pensar como um regime normativo de saúde poderia preocupar-se com uma manifestação esquizofrênica... uma manifestação com traços de transtorno de personalidade, uma despersonificação (risos) a música traz o que é esquizo, o que é neurodivergente e encerra tudo isso no espectro humano... é legal pensar que a música, a dança é e segue sendo um ato revolucionário e transgressor contra a violência identitária... contra esse processo de rostidade tão mesquinho que também nos atravessa.



2. Obrigad@ pela resposta interessantíssima, mister. ^.^ Pensei e busquei sentir em qual dos mil caminhos possíveis que a resposta abre eu iria entrar para fazer essa segunda pergunta...


Fiquei feliz que você trouxe o conceito de "rostidade", e sua descrição sobre não saber dizer se é um homo sapiens ou uma ameba boiando ao viajar por essas sensações e presenças através da música, me fez lembrar do "devir molecular"... ^.^


E então, a reflexão no último parágrafo, sobre o "regime normativo de saúde", me levou ao encontro dessas linhas de "Mil Platôs" que descrevem as diferenças entre as visões da psicanálise e da esquizoanálise:


"a Psicanálise, não somente em sua teoria, mas em sua prática de cálculo e de tratamento, submete o inconsciente a estruturas arborescentes, a grafismos hierárquicos, a memórias recapituladoras, órgãos centrais, falo, árvore-falo.

A Psicanálise não pode mudar de método a este respeito: sobre uma concepção ditatorial do inconsciente ela funda seu próprio poder ditatorial. A margem de manobra da Psicanálise é, por isto, muito limitada. Há sempre um general, um chefe, na Psicanálise como em seu objeto (general Freud).

Ao contrário, tratando o inconsciente como um sistema a-centrado, quer dizer, como uma rede maquínica de autômatos finitos (rizoma), a esquizo-análise atinge um estado inteiramente diferente do inconsciente.

As mesmas observações valem em Lingüística; Rosenstiehl e Petitot consideram com razão a possibilidade de uma 'organização a-centrada de uma sociedade de palavras'.

Para os enunciados como para os desejos, a questão não é nunca reduzir o inconsciente, interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore.

A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo."


Quais são seus pensamentos e reflexões sobre o que eles e outr@s autores(as) falam sobre esses temas?


Bom, como alguém que tem uma trajetória de estudo e interesse mais voltado pra a fenomenologia existencial, tenho que concordar com você sobre as limitações da psicanálise...


Penso esse ideal psicanalítico de inconsciente como algo bastante restrito e apequenador... a sistematização de um aparelho psíquico vem muito mais de uma necessidade explicativa da ciência do que de um livre pensar. Sendo assim o inconsciente freudiano acaba por reduzir as experiências humanas à funcionais (calcadas na realidade) e disfuncionais (fantasiosas), restringindo a memória à mera representação do mundo.


A experiência do inconsciente é experimentada sempre à luz da consciência, haja ou não a imediata tradução/compreensão dessa presença, mas a ideia de explicar psicopatologicamente essas manifestações acabam restringindo a experiência a uma limitada série de causalidades ligadas a acontecimento anteriores e não como uma experiência genuina e criativa de mundo.


Penso que a fenomenologia aborde as manifestações de uma maneira que aproxima mais do que são as experiências humanas, sem fazer cisões ou categorizar os fenômenos. Eles se dão num fluxo de acontecência que acolhe as narrativas da experiência de uma realidade percebida e não de uma realidade objetiva (aqui percebemos que até o discurso e a narrativa das experiência são direcionadas e empobrecidas pela difusão da psicanálise no senso comum, uma vez que a explicação dos fenômenos calcados em termos psicanalíticos impedem um aprofundamento das narrativas, encerrando a experiência numa analítica de causa e efeito e não de compreensão de sentidos).


Creio que objetivar a realidade acabar por objetivar também os fenômenos da consciência, o que, para mim, além de precário é um tanto perigoso, pois acaba forjando subjetividades e direcionando a experiência humana numa centralidade estéril.



3. Maravilha! Bom ler suas visões sobre como a psicanálise e a fenomenologia existencial enxergam essas experiências ^.^

Trazendo mais uma vez as palavras de Deleuze e Guattari (poder fazer isso nessa entrevista está sendo um deleite, você me conhece e deve imaginar rsrsrs) para que elas nos inspirem:


"Quando Boulez se faz historiador da música, é para mostrar como, cada vez de maneira bem diferente, um grande músico inventa e faz passar uma espécie de diagonal entre a vertical harmônica e o horizonte melódico. E cada vez é uma outra diagonal, uma outra técnica e uma criação.

Então, nessa linha transversal que é realmente de desterritorialização, move-se um bloco sonoro, que não tem mais ponto de origem, pois ele está sempre, e já, no meio da linha; que não tem mais coordenadas horizontais e verticais, pois ele cria suas próprias coordenadas; que não forma mais ligações localizáveis de um ponto a outro, porque ele está num "tempo não pulsado": um bloco rítmico desterritorializado, abandonando pontos, coordenadas e medida, como um barco bêbado que se confunde, ele próprio, com a linha, ou que traça um plano de consistência.

Velocidades e lentidões inserem-se na forma musical, impelindo-a ora a uma proliferação, a microproliferações lineares, ora a uma extinção, uma abolição sonora, involução, e os dois ao mesmo tempo.

O músico pode dizer por excelência: 'Odeio a memória, odeio a lembrança', e isso porque ele afirma a potência do devir."


Você faz música, mister, tocando instrumentos e cantando, compondo e produzindo, gravando e fazendo shows. Como é viver essas experiências diversas e quais potências você sente que elas despertam nos sentidos físicos e mentais?



Muito interessante essa pergunta, mister... pois ela me dá a oportunidade de falar sobre algo que muitas vezes já meditei e senti e que tem à ver com esse fluxo, com esse desterro de não se localizar olhando as bordas, as margens simétricas que buscamos dar para esse estar-no-mundo.


É bem verdade que vivemos assim, sempre buscando mapear os territórios pra nos sentirmos seguros, quase que tentando anular o devir e qualquer sombra de mudança e instabilidade... penso que com a música também isso se dê... muitas vezes a relação do artista com a música tem sempre as margens bem definidas e ao alcance da vista e a música se construa numa ordem sistematizada e altamente ensaiada, com começo, meio e fim bem estipulados... harmonia memorizada (olha a memória aí rsrsrs), ritmo e compassos memorizados, melodia memorizada, escalas memorizadas... enfim... a reprodução estéril da obra se mostra pronta... (isso me fez pensar em Walter Benjamin e seu livro "a obra de arte da era da reprodutibilidade técnica).


Acho que aí é que está o ponto... a técnica... a técnica muitas vezes esvazia o sentido do contato, do imediato aqui e agora. Muitas vezes a atenção do músico repousa mais na técnica do que na música. Mas graças aos céus o devir sempre coloca percalços e provoca mudanças no mais ensaiados dos concertos, é a facticidade da vida.


Eu, particularmente, como músico, adoro esse exercício de se lançar na música, mesmo que exista uma base a se seguir na memória, procuro sempre reservar momentos para o improviso, para esse estar em jogo, para o devir da música e dos músicos que estão comigo... penso na poesia assim também... o primeiro verso puxa o segundo, que puxa o terceiro e então quarto... e assim vai se atualizando o irresoluto, fazendo desaparecer um "eu" neste devir, neste movimento que me faz humildemente ser veículo dessa menifestação que me atravessa... é improvisando que a vida é mais vida, o mistério se reinstala, o estado de alerta, o contato puro com o não-saber, mas ir... é como colocar um pé a frente do outro ao caminhar, não pensamos.


Nesse sentido penso que o jazz tem muito a nos ensinar.


4. Sensacional mister! Como tem sido vivenciar isso sas suas experiências e histórias com bandas (O Estrangeiro, Violeta Magenta e Sartriana), e no seu novíssimo projeto solo sat-chit-änanda?


Poder vivenciar a criação musical em tantos projetos diferentes é uma dádiva, pois cada projeto nasce e se transforma em seu próprio ritmo e articulando seus sentidos específicos, sendo assim eu tenho 4 frentes pra me desterrar e garantir que um show nunca vai ser igual ao outro rsrsrsrs


A presença de outros compositores também é muito interesse (n'O Estrangeiro e na Sartriana divido esse espaço com meu amigo Nathã e na Violeta Magenta este lugar é totalmente ocupado pela Duda), desta forma eu me sinto impulsionado por motivos de criação que estão muito além de uma ideia de "eu", isso deixa todo o processo mais interativo e descentraliza tudo. É muito interessante, pois não tenho domínio algum do que será mostrado nos primeiros momentos de criação de arranjo (palavra perigosíssima e avessa a tudo o que temos falado, né? "Arranjo" rsrsrsrs) mas enfim... o processo já acompanha o mistério do que o outro é pra mim. Isso é muito legal.


Já na sat-chit-änanda, projeto em que trabalho de maneira solo percebo que ainda assim tenho vivenciado esse atravessamento do devir já que este projeto nasceu com o intuito de criar independente daquilo que chamamos mais romanticamente de inspiração... este projeto é basicamente o deixar-se ser atravessado, se propor a isso. Eu basicamente pego um loop de bateria e começo a criar letra e melodia em cima do que inicialmente me atravessa (o ritmo, a percussão)... a graça maior deste projeto é que de certa forma ele radicaliza essa condição do devir e da experimentação, pois eu me obriguei a terminar as canções na mesma noite em que comecei a trabalhar nelas... sendo assim elas se transformam num retrato desse atravessamento que em média levava duas horas para ser concluído e depois não voltava a mexer nas músicas, mesmo que enxergasse, posteriormente, "erros", o que, cá entre nós, tem aos montes nesse primeiro EP rsrsrsrsrs


5. Show mister! Então fala mais pra gente sobre o nome desse projeto novo, o nome do ep, as inspirações e temáticas das letras, e o que mais voce quiser falar?


Bom, primeiramente, eu gostaria de agradecer pelo espaço, pelo convite e pela oportunidade de termos essa belíssima conversa. Foi um prazer poder falar de tanta coisa legal, mister.


Então, sat-chit-änanada vem do sânscrito e é a junção de três palavras. A primeira, "SAT" quer dizer ser, existência, "CHIT", significa consciência total e, por fim, "ANANDA" (sem a trema "ä") que é traduzido como êxtase.

O sentido dessas palavras dentro do antigo pensamento é revelar que  o ser e a sua total e plena consciência da existência e do mundo só podem se dar pela terceira via; ou seja, por meio do êxtase... assim a consciência de existir é despertada pelo entusiasmo, pelo êxtase de estar no mundo... e como fazemos isso?... buscando o que nos faz sentido... vivendo o que nos causa êxtase, seja lá o que for... no meu caso é a música, a poesia, a filosofia... é só em contato com isso que me sinto existindo plenamente e com potência. Em resumo, isso é o que há por trás do nome do projeto. Acho belíssimo.


Quanto às temáticas tratadas nas letras é sobretudo a "beleza da arte", "a beleza pela beleza", a beleza não expressa racionalmente, mas expressa já na pura expressão da coisa, a beleza na prática por assim dizer rsrsrsrsrs... escolhi as palavras porque as achei belas juntas, porque a pronúncia e a musicalidade me pareceram belas, o sentido veio depois... ou nem veio ainda rsrsrsrsrs daí o nome do EP também "algum dia o nome me virá" representa isso, a ausência de uma decodificação e interpretação instantânea e escancarada. Eu ainda estou tentando entender as letras, ainda estou tentando dar um sentido racional pra experiência e pelos atravessamentos de compor esta obra... logo o nome do álbum não me vinha à mente e segue assim, talvez um dia exista um nome pra ele, mas por hora e pra sempre se chamará assim: "um dia o nome me virá", o que também dá a conotação de espaço, de abertura ao mistério, de algo inacabado, sendo no gerúndio.





ouça o EP "Algum dia o nome me virá" da Sat Chit Änanda: https://open.spotify.com/album/2waHHZy6jZXzx12SK3JdQb?si=ZCqr8JgpRYmw3PGjiWaT6A



siga Hugo Reis e seus projetos no instagram: https://www.instagram.com/hugo.mreis/

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