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  • Ikaro Maxx

Antonin Artaud e o ‘bluff’ surrealista




INTRODUÇÃO

 

 Como estamos no ano da celebração do centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo redigido por André Breton trarei por aqui – tanto pela coluna “Psicografias” relativa a traduções quanto pela minha coluna experimental “Provokações” cuja estreia ainda não está prevista em cronograma, mas juro que está a caminho – algumas potenciais contribuições ao debate público, conhecimentos, insights e reflexões sobre caminhos, eventos e acontecimentos ligado a história do surrealismo, artistas a ele relacionados (e não apenas a ele, que fique o alerta) bem como possibilidades de se cruzar e aventurar ousadias de elaboração em torno de temas, experiências e visões a respeito de amor, sonho, criação poética e liberdade aplicadas na fusão carnal entre arte & vida.

Neste momento tomo um brilhante artigo escrito pelo poeta, pesquisador e tradutor mexicano Ricardo Echávarri – que saiu em edição da Agulha Revista de Cultura [link e minibio do autor logo abaixo] – sobre uma das primeiras rixas e cismas impactantes sofridas ao longo da história do movimento surrealista em suas várias décadas de existência.

Muito embora pessoalmente seja patente a minha admiração e entusiasmo pela abordagem, obra e pessoa de Antonin Artaud (o que poderia talvez indicar certo “privilégio” ou “predileção” de minha parte ao pôr em perspectiva e “julgar” – com tanto tempo e espaço de distância aos acontecimentos e algumas de suas consequências – favorável mais a um do que a outro dos poetas envolvidos na “treta”) a minha admiração por Breton e a forma com que se conduziu dali em diante não deixa de ter o seu legítimo frisson e espaço.

De toda maneira, “revisitar” essa dissidência no auge de seu fervor ideológico e àquela altura de primeiros entreatos do século XX, pode nos dar pistas e jogar luzes sobre debates que ainda hoje – sejam com novas vestimentas ou escamoteados sob outros jargões da “moda” – refletem sobre a tarefa do artista – e da arte – em meio aos conflitos políticos e históricos próprios ao seu (ou ao nosso, de certo modo) tempo. Assistir aos dois artistas geniais “no ringue” das polêmicas cruzarem as espadas e perspectivas tem sim seu lado empolgante, além de ser bastante elucidativo.

A ruptura entre Artaud durou cerca de duas longas décadas, período no qual Breton se chocou contra o descaso e chauvinismo oriundo dos sóbrios estetas do realismo soviético do comunismo – que estavam, de certo modo, “cagando” para os surrealistas, e a posterior constatação de sua maior inclinação a um anarquismo ao invés do comunismo daquela ocasião, enquanto que Artaud criou toda a sua teoria-práxis do Teatro da Crueldade (que infelizmente não conseguiu realizar “de todo”, deixando esboços e caminhos aos experimentadores futuros) e buscou a sua cura-iluminação em imersões rituais de peiote no México, depois passando pelo inferno dos seus nove anos de internações psiquiátricas sucessivas em que passou por tratamentos a base de eletrochoque e outras torturas.

Uma espécie de “trégua” e reatar da amizade surgiu na tentativa de resgate de Artaud de sua condição enferma, enclausurada e de “morto vivo” alienado nos asilos– não sem algumas rugas como se pode constatar em cartas escritas por Artaud – como a de 28 de fevereiro de 1947, ano anterior à sua morte, que pode ser encontrada na edição de Em plena noite ou o Bluff Surrealista, lançada pela editora portuguesa Frenesi (2000) ou em outras publicações e estudos sérios sobre a história do surrealismo – em uma retomada artística que teria tudo para ser triunfal. 

Sem mais delongas, que fiquemos com as palavras do Echávarri a respeito da ruptura de Antonin Artaud com André Breton e com o surrealismo, devidamente contextualizada, neste mais que belíssimo, necessário artigo. 

 

***

 

RICARDO ECHÁVARRI: Antonin Artaud e o ‘bluff’ surrealista

 

Tradução: Ikaro Maxx

 


Quando a história do Surrealismo – a mais audaciosa e transcendente vanguarda do século XX – for reescrita, em sua parábola terá de ser assinalada seus pontos de Hileg (ou axiais), de que falava Paracelso: essas adesões entusiastas ou despedidas abruptas ao único ismo (herdeiro do “sol negro” do Romantismo) que se postulou como um mais além da esfera artística ou literária, e hasteou a bandeira da poesia, do amor e da liberdade, quase como uma nova concepção da vida.

Antonin Artaud junta-se ao Círculo Surrealista em 1924, tendo acabado de publicar a sua coleção de poemas Tric Trac del Cielo. Dirigiu a Oficina de Investigações Surrealistas e criou o Teatro Alfred Jarry, em homenagem ao inventor da Patafísica (ou “ciência das soluções imaginárias”) e grande inovador cênico. A passagem de Artaud pelo Círculo, embora fulgurante, foi suficiente para delinear uma era civilizadora baseada no surrealismo: uma nova ordem passional que recuperaria as faculdades poéticas perdidas do homem. “A poesia deve ser feita por todos, não por um só”, tinha dito o jovem Cisne de Montevidéu. Artaud escreveu uma série de cartas ao Papa, ao Dalai Lama, etc, que deram o tom anti-burguês aos textos do grupo. No México, Artaud é conhecido pela sua Viagem à Terra dos Tarahumara, na qual relata o seu encontro com o rarámuris e a sua experiência com o peiote, o cacto sagrado do norte do México. Esta viagem ao coração da Sierra Madre, “em busca de uma raça-princípio, original, não contaminada pelo Ocidente” seria chave em sua última etapa criativa. O balanço da contribuição de Antonin Artaud para o surrealismo ainda está por fazer, mas ninguém abraçou a poesia com uma forma de conhecimento e de busca iluminada interior como ele.

Artaud haveria de protagonizar o primeiro (e o mais telúrico) adeus ao surrealismo. A razão desta despedida é o tema do opúsculo “A Plena Noite ou O Bluff Surrealista” (publicado em 1927, numa edição de autor). Trata-se de uma resposta a Au Grand Jour (1926) onde Breton e Eluard se inclinam a ligar a revolução poética à revolução social e a aderir ao PC francês. O tom da polêmica é muito intenso. A condenação de Artaud é contundente: a sua concepção de revolução, apenas como uma “metamorfose das condições internas da alma”, faz dele um simples niilista, um diletante. Breton decreta a expulsão do poeta e ator de Marselha: “Hoje”, diz com severidade, “expulsamos este patife.”

A réplica de Artaud, no Bluff, não é menos intensa: escreve uma série de frases que só se repetirão, ciclicamente, até os dias atuais: “O surrealismo está morto” – diz – ao abraçar a realidade e “esquecer o desejo”. Ao fazê-lo, perdeu seu próprio “centro” – a “transfiguração do possível” - que fazia dele “um novo tipo de magia”. A própria ação do grupo foi considerada estéril “devido a falta de influência dos surrealistas nos costumes e ideias da época”. O surrealismo tinha resvalado para o “sentido utilitário e prático”, esquecendo-se que a Revolução era, em essência, espiritual, interior. Para Artaud, estes novos “convertidos” à fé do marxismo são simplesmente “revolucionários que não revolucionam nada”.

Talvez a reconstrução do contexto desta polêmica, que coloca frente a frente Artaud e Breton, nos dê um panorama mais claro da questão. Em 1925, eclode em Rif, no Marrocos, uma revolta anticolonial. Clarté, de filiação comunista, e os surrealistas, contra a corrente de fervor chauvinista – encorajada na Espanha por Primo de Rivera e na França por Doumerge -, levantam-se a favor dos rebeldes. É nessa altura que André Breton e o seu círculo íntimo (Éluard, Péret, Aragon e Unik) planejam dar um passo prático: aderir ao Partido Comunista e enlaçar assim as três modernidades mais significativas do século XX: o surrealismo, a psicanálise e o marxismo.  Breton, como todo homem libertário, tinha saudado a Revolução de outubro, e em “Legítima Defesa” (A Revolução Surrealista nº 8, 1926) declarou-se a favor da carta vermelha. Apesar dessa adesão, recusa o convite de Henri Barbusse, diretor do Hummanité, para colaborar para um jornal cuja “qualidade escassa” julga estar longe de ser um verdadeiro órgão de instrução do proletariado. Breton, apesar deste primeiro ato de fé, não dá seu braço a torcer: “Julguei inútil aderir ao Partido Comunista”. Sentiu também o dever de defender o grupo das acusações de “artistas burgueses” ou “diletantes esnobes”.

A polêmica entre Artaud e Breton alcança o auge da tensão em 1927. Dois pensadores extraordinários, dois poetas iluminados, lançaram os seus melhores relâmpagos um contra o outro, debatendo o significado do abraço entre poesia e revolução. Os argumentos de Artaud em O blefe surrealista são soberbos: a revolução é essencialmente interna, uma mudança espiritual, uma alquimia verbal e vital, como Rimbaud havia esclarecido. A outra seria pôr em risco a poesia e deixar latente o perigo de a subordinar ao poder. Com Artaud, quase todos os "experimentalistas" do Bureau disseram adeus ao Surrealismo... Soupault, Vitrac, Carrive, Deltei, Gérard, Limbour, Masson. Qualquer outro ismo teria desmoronado como um castelo de cartas com tal deserção, mas não o Surrealismo.

A contrarresposta não é menos soberba: a Revolução é uma questão integral. Breton evoca também Rimbaud, o poeta vidente moderno. Recorda os dias do jovem poeta na Comuna de Paris: “um menino com orelhas de rato e olhos de bígaro que, depois de seis dias de caminhada desde a sua Charleville natal até Paris, aparece, quase aos pedaços, no quartel da Babilônia, perante os bravos comunistas”. Os passos do poeta, entre as barricadas, naqueles dias do “primeiro assalto ao céu”, foram contados pelo coronel Godchot: Rimbaud compôs um hino, redigiu uma Constituição, saudou os rebeldes... Nesses passos, André Breton replica que não se trata apenas de uma questão política (ou ética) abraçar a práxis revolucionária. Desvenda, seguindo a argumentação de Artaud, a aporia dualista de ver apenas um lado do espelho: resolve a discussão sobre se a Revolução é “interna” ou “externa”, “utópica” ou “fatual”, “espiritual” ou “material”, postulando a procura (quase budista ou zen) de um “ponto” onde esta dualidade se dissolve: “Tudo leva a crer que existe um certo ponto no espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente” (Segundo Manifesto, 1930). A atividade surrealista não teria “outro motivo” senão a esperança de “determinar” esse ponto. O homem é uno com o seu eu interior e suas circunstância, o homem de ação é o mesmo que sonha. Nesta frase, Breton encontra finalmente a fórmula que une poesia e revolução:

 

Marx disse: transformar o mundo, Rimbaud disse: mudar a vida. Para nós, as duas palavras de ordem são uma e a mesma.  

 

A complexa história do Socialismo e a Arte de Vanguarda durante o Século XX, se levarmos em consideração alguns fatos isolados relevantes, parece às vezes dar a razão a uns ou a outros. A relação do surrealismo com o marxismo (sobretudo em sua versão ortodoxa) não tem sido em última instância senão a de um completo fracasso.

O P[artido] C[omunista], que já na Rússia havia abandonado – segundo o balanço de Emma Goldman e Victor Serge – o “modelo da Comuna” e adotado o “caminho de cima”, que conduziria ao regime burocrático e totalitário de Stalin, nunca foi muito receptivo aos surrealistas. Breton expõe o difícil diálogo com a Comissão de Controle e a absoluta incompreensão desta em relação às obras de Sade de Lautréamont, que não se enquadravam nos moldes otimistas da arte oficial russa. As ilustrações de Dalí e Masson, que aparecem em O surrealismo a Serviço da Revolução, consideradas “pornográficas” ou “decadentes” pelos Comissários, ilustram mais que um desacordo.

O PC acaba por expulsar, em 1933, os surrealistas, que encontraram pouco espaço no Congresso Internacional para a Defesa da Cultura (Paris, 1935) e na AEAR, dominados por escritores alinhados com o Kremlin. O próprio André Breton, por volta de 1936, desencantou-se com a Rússia, sobretudo quando Stalin intensificou as purgas, seus criminosos “Processos de Moscou”, que na Espanha foram replicados na “Operação Nikolai”, culminando, ai mais puro estilo Cheka, no rapto e assassinato de Andreu Nïn, dirigente do Puom. Por outro lado, a rejeição de André Breton da arte estatal, oficial e panfletária (que em outro plano pode ser vista como um reconhecimento tácito de que, apesar de tudo, Artaud tinha razão), condensada no “realismo socialista” – o ideal artístico do “marxismo soviético” – ficou expressa no manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente (1938), que escreveu em Coyoacán, no México, juntamente com Trotsky: aí e na revista Clé, Breton reitera a necessidade de o poeta escrever sem o imperativo de ortodoxias de qualquer tipo: “Toda a liberdade na arte”.

A luta permanente do surrealismo pela liberdade artística tem, nesta primeira polêmica protagonizada por dois dos maiores poetas do século XX, Antonin Artaud e André Breton, seu primeiro arrancar de penas.

 

 


Ricardo Echávarri (México, 1958) Poeta, ensaísta, investigador e tradutor. Doutorado em Literatura. Ensinou literatura em várias universidades e foi professor de línguas românicas em Harvard. Dirige o Centro de Estudos Surrealistas na Cidade do México e escreveu César Moro en México, los versos de un voluntario inadaptado (tese no El Colegio de México) e Surrealismo / México. Na editora Pleno Margen difundiu a poesia de Antonin Artaud, Leonora Carrington, Arthur Cravan, Edward James, Wolfgan Paalen, autores de raízes surrealistas. É colaborador das revistas Agulha (Brasil) e Matérika (Costa Rica). Faz parte do volume "Barajar la poesía", Surrealismo en Latinoamérica, Alfonso Peña, UAEM, México, 2019.

 

 

Publicada originalmente em:



Ikaro Maxx é poeta, tradutor, editor e agitador cultural.

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