Não tem um só perrengue que não venha acompanhado de alguém ao pé do ouvido, vai dar tudo certo, podia ser pior, tente ver pelo lado positivo, o tempo cura tudo, calma, a gente dá o nosso melhor, há males que vem para o bem. Lugar comum, dito popular, provérbio e aforismo são partes intrínsecas de nossa cultura. Bordões.
Não me leve a mal, penso que são maravilhosos e sábios, alguns até curiosos e outros batem como um samba-alento. Minha ojeriza começou com as tantas frases bonitas que circulam por aí, e que se olharmos de perto, é puro vazio. Às vezes só fazem sentido para um grupo, num contexto específico e na maioria das vezes numa situação de privilégio. Vamos combinar que não, não vai dar tudo certo, nem para todos e nem sempre.
Frases feitas à medida. Para um bom negociador, meia oportunidade basta, a carapuça genérica tamanho único fabricada num navio por escravas chinesas serve bem para tantos aspirantes criados em cativeiro. Bora rir e repetir automaticamente memes, fenômeno das redes. Precisamos de um descanso dessa vida dura. O brasileiro sabe rir da própria miséria. Comfortably Numb, canta o Pink Floyd.
Ocasionalmente demonstrando empatia, tais frases têm o intuito frequente de cortar uma discussão, evitando conversas desafiadoras que proporiam reflexão, esforço e mudança. Vão mesmo ser desconfortáveis. Melhor não, melhor continuar tranquilo e comportado, andar pra frente sem pensar muito, enterrando em algum lugar profundo nossos males, com a raiz.
Ao mesmo tempo, reconheço e abuso do conforto da repetição de dizeres conhecidos, afinal, são frases que crescemos ouvindo de familiares, e propiciam a paz de espírito compatível com um café com bolo de fubá da avó na casa da avó. Bom dia, tudo e você, aquele abraço, tudo de bom!
Mas como sou meio desaforada, com o passar do tempo tenho preferido crochê a clichês. Por isso, gostaria de propor que olhássemos com atenção os clichês presentes na nossa vida, questionando sua origem, significados e seu efeito. Se não fizer sentido, que tal pararmos para desorganizar e atualizar toda nossa metafísica? Um lobo em pele de cordeiro pode virar um bolo em pele de brigadeiro.
Lembrei de um podcast americano que curto muito, é como um programa de rádio, se chama Night Vale. Entre o sobrenatural e teorias reais da conspiração, se parece ao que chamo de comédia de ficção científica. Gosto do que eles sugerem como lugares comuns, fazem todo um desaforismo, palavra que para mim significa desaforo com não-aforismo. A ideia é divertir causando estranhamento, nos tirando da zona de conforto. Um dos quadros do tal programa de rádio é a previsão do tempo. O locutor anuncia, “and now, the weather”, mas não se sabe nada sobre o clima, pois o the weather é um quadro musical (e tocam canções incríveis da cena independente estadunidense). Se você ainda não ouviu, e espero que ouça, desculpe o spoiler aqui. Eu mencionei para poder pegar o gancho.
E agora, a previsão do tempo:
As perdas inevitáveis
andam com suas próprias pernas
no terreno semiárido
entre mudas de peras
enquanto isso
do outro lado da faixa amarela
a espera rima com pisca-alerta
sem seta, na intermitência
dos minutos que antecedem
voltar pro caminho
prestes a se bifurcar
os filhos e seus filhos são os mesmos
e as aparências não enganam
são poemas claramente esganados
feito purê de batata com endívia
caramelizada
inútil controlar o que foi feito
pra transbordar
a eurritmia não muda os fatos
e na falta de tempero melhor
pitadas de choro a desgosto
para desafogar desaforos
sim, a batida perfeita
do descompasso
tanto bate
até que cura
no alfabeto do universo
as últimas letras
serão o inverso
se assim no princípio
era o inverso
todas as coisas foram feitas por ele
Cris Oliveira é poeta, escritora, tradutora e bibliotecária
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