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  • Cris Oliveira

Desaforismos e a previsão do tempo


Não tem um só perrengue que não venha acompanhado de alguém ao pé do ouvido, vai dar tudo certo, podia ser pior, tente ver pelo lado positivo, o tempo cura tudo, calma, a gente dá o nosso melhor, há males que vem para o bem. Lugar comum, dito popular, provérbio e aforismo são partes intrínsecas de nossa cultura. Bordões.

 

Não me leve a mal, penso que são maravilhosos e sábios, alguns até curiosos e outros batem como um samba-alento. Minha ojeriza começou com as tantas frases bonitas que circulam por aí, e que se olharmos de perto, é puro vazio. Às vezes só fazem sentido para um grupo, num contexto específico e na maioria das vezes numa situação de privilégio. Vamos combinar que não, não vai dar tudo certo, nem para todos e nem sempre.

 

Frases feitas à medida. Para um bom negociador, meia oportunidade basta, a carapuça genérica tamanho único fabricada num navio por escravas chinesas serve bem para tantos aspirantes criados em cativeiro. Bora rir e repetir automaticamente memes, fenômeno das redes. Precisamos de um descanso dessa vida dura. O brasileiro sabe rir da própria miséria. Comfortably Numb, canta o Pink Floyd. 

 

Ocasionalmente demonstrando empatia, tais frases têm o intuito frequente de cortar uma discussão, evitando conversas desafiadoras que proporiam reflexão, esforço e mudança. Vão mesmo ser desconfortáveis. Melhor não, melhor continuar tranquilo e comportado, andar pra frente sem pensar muito, enterrando em algum lugar profundo nossos males, com a raiz.

 

Ao mesmo tempo, reconheço e abuso do conforto da repetição de dizeres conhecidos, afinal, são frases que crescemos ouvindo de familiares, e propiciam a paz de espírito compatível com um café com bolo de fubá da avó na casa da avó. Bom dia, tudo e você, aquele abraço, tudo de bom!

 

Mas como sou meio desaforada, com o passar do tempo tenho preferido crochê a clichês. Por isso, gostaria de propor que olhássemos com atenção os clichês presentes na nossa vida, questionando sua origem, significados e seu efeito. Se não fizer sentido, que tal pararmos para desorganizar e atualizar toda nossa metafísica? Um lobo em pele de cordeiro pode virar um bolo em pele de brigadeiro.

 

Lembrei de um podcast americano que curto muito, é como um programa de rádio, se chama Night Vale. Entre o sobrenatural e teorias reais da conspiração, se parece ao que chamo de comédia de ficção científica. Gosto do que eles sugerem como lugares comuns, fazem todo um desaforismo, palavra que para mim significa desaforo  com não-aforismo. A ideia é divertir causando estranhamento, nos tirando da zona de conforto. Um dos quadros do tal programa de rádio é a previsão do tempo. O locutor anuncia, “and now, the weather”, mas não se sabe nada sobre o clima, pois o the weather é um quadro musical (e tocam canções incríveis da cena independente estadunidense). Se você ainda não ouviu, e espero que ouça, desculpe o spoiler aqui. Eu mencionei para poder pegar o gancho.

 

E agora, a previsão do tempo:

 

 

As perdas inevitáveis

andam com suas próprias pernas

no terreno semiárido

entre mudas de peras

 

enquanto isso

do outro lado da faixa amarela

a espera rima com pisca-alerta

 

sem seta, na intermitência

dos minutos que antecedem

voltar pro caminho

prestes a se bifurcar

 

os filhos e seus filhos são os mesmos

e as aparências não enganam

são poemas claramente esganados

feito purê de batata com endívia

caramelizada

 

inútil controlar o que foi feito

pra transbordar

 

a eurritmia não muda os fatos

 

e na falta de tempero melhor

pitadas de choro a desgosto

para desafogar desaforos

 

sim, a batida perfeita

do descompasso

tanto bate

até que cura

 

no alfabeto do universo

as últimas letras

serão o inverso

 

se assim no princípio

 era o inverso

todas as coisas foram feitas por ele




Cris Oliveira é poeta, escritora, tradutora e bibliotecária

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