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  • Renata Mormino

É que eu estava precisando respirar


(capa do disco "nem toda pausa é espera" do cantor Rubi)


Nada me doeu mais do que chegar no depósito onde deixei meus móveis provisoriamente, abrir as caixas de livros e encontrá-los parcialmente mofados, esverdeados, amaçados, em suma, irreconhecíveis. Aquilo foi a gota d’água de toda essa perturbação que me assola há quase 2 anos.


Ver meus livros daquela forma deplorável foi como ver minha vida atual. Livros em péssimo estado, mas que traduzem cada parte da minha caminhada. Entre tantos títulos, absolutamente todos carregam intima relação com o momento vivido na época em que os comprei (ou da época em que rolou o furto – em juridiquês é apropriação indébita- afinal, amigos e amores efêmeros também servem para isso).


Tratei de pegar quantos livros coubessem na enorme bolsa que eu havia levado, mais alguns que coloquei em outra sacola de pano que encontrei no depósito, e acomodei mais tantos quantos coubessem no precioso espaço entre meus braços e o quadril. Tudo muito bem seguro com a pressão que meus suvacos conseguiam bravamente garantir.

Assim, sem conseguir abrir portas durante o caminho e parecendo um pinguim, marchei no sentido que me restava. Retornei à casa de minha mãe, onde desesperadamente tenho tentado sobreviver, e esbravejei aos 4 cantos aquele absurdo que havia acabado de vivenciar.


Continuei, já afirmando que havia decidido vender todos os móveis, pois encontrar meus livros daquela forma era a resposta para uma pergunta que eu havia me feito. Eu deveria me livrar logo daquelas coisas, afinal, voltar a morar sozinha está parecendo algo muito distante.


Encontramos uma alternativa, eu e minha mãe. Há uma pequena edícula no fundo da casa da minha avó, espaço que certamente comportaria todos os poucos móveis que possuo e em nada atrapalharia a dinâmica da casa alheia, até porque o espaço tem sido utilizado para incontáveis nadas.


Acontece, caro leitor, que estamos falando de uma idosa não muito amigável. Para não tomar muito seu tempo, vou resumi-la em alguns adjetivos: grossa, estúpida, amargurada. Dito isto, falar com ela, é como morrer duas vezes. Pois então já fui vendo o preço do caixão.


Liguei para a temida. Fui atendida com a voz de quem odeia respirar. Grosseiramente ela disse:


- “O que você quer?”


Contabilizei mais uma humilhação para a lista. Na sequência pensei: se essa velha não me deixar ocupar a edícula, vou usar a carta da advogada filha da puta. Como leitores em geral não são médiuns, você não vai saber que sou coproprietária da casa - porque meu pai era filho único e meu vô morreu em março passado - e que a matrícula já está atualizada. Bom, agora você sabe.


Voltando, agora para narração dos fatos - antes que eu me perca conversando com alguém que nem existe ainda.


Expliquei para ela o “favor” que eu precisava, expliquei cerca de três vezes (talvez quatro) (sei que vou parecer uma neta muito arrombada para você - e não ligo, mas realmente acredito que o QI da minha avó seja uns 25) e recebi uma confirmação positiva.


- “Ta Renata, pode deixar os móveis aqui”.


Em um primeiro momento um tanto quanto aliviada porque a hipótese, ala “Casos de Família”, não precisou se concretizar, mas depois, quando a adrenalina passou, um peso tomou conta do meu corpo. Mexer nos meus móveis é imergir no passado de independência, revisitar a casa onde fui feliz e, dessa vez, forçadamente encarar a minha avó, relembrar do meu avô e ainda sofrer com o tratamento de estrume que ela tem para me oferecer.


Era claro que tudo ia cair como uma bomba, mas eu ainda não tinha essa noção e um tanto inocente (burra) fui levando o dia como se tudo estivesse como qualquer outro (spoiler não era). Um dia normalmente triste, melancólico e com uma dose de esperança que é para os espectadores não desanimarem da atriz principal. Sim, eu acredito que existem telespectadores da minha vida e o cara da produção que cuida do enredo é um grande arrombado, mas isso fica para outra hora.


Pois então, sabe quando eu percebi que era uma bomba? Isso mesmo, (não sei se você pensou nisso, mas finge que sim) quando a bomba estourou. Os destroços foram: algumas memórias apagas; trechos de gritos desesperadamente direcionados à minha mãe; muitos pedidos para que me deixar em paz; aproximadamente sete repetições da frase “eu só quero morrer”; e três repetições da frase “a minha vida está uma bosta”.


Como boa adolescente de quase 30 anos (maldito retorno de Saturno) fui para o meu quarto, fechei a porta e comecei a chorar e eu não sei chorar de um jeito bonito, sabe? Daquele jeito chique e tal. Meu choro é cheio de soluços altos, barulhos do meu corpo tentando expelir um pouco de pigarro, mil litros de lágrimas, enfim, chorei por meia hora. É verdade.


Um pouco de cansada de chorar porque sim, eu contabilizei no relógio, resolvi só respirar. Respirar como alguém que gosta de respirar. Não vou mentir, o choro continuou, mas agora eu respirava também e (ufa) em algum momento o choro parou. Olhei para o lado, onde fica a mesa em que estudo e trabalho, e puder ver meus livros, todos desorganizadamente amontoados. Os mais pesados em cima, super desarmônico, mas altamente funcional para desamassar os menores.


A partir dessa visão, comecei a pensar sobre os meus livros, ainda respirando de verdade. Olhei para o amontoado com ternura e sorri com a beleza excêntrica daquela cena. Senti carinho por mim quando concluí que meus livros são eu e finalmente eu estava comigo novamente.





Renata Mormino é advogada, baterista e poeta. instagram: https://www.instagram.com/rmmormino/

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