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  • Cris Oliveira

Quitanda, quitutes & tutti-frutti


Amor que exige não dá. Acordava mais cedo para lavar o cabelo liso comprido sem secador. Não lembro se lavava todos os dias com xampu aquamarine cabelos oleosos. Depois terminava alguma lição e ajudava a mãe. Fazia bolinho de arroz do arroz que sobrava, com cheiro verde e cebola, a mãe que fritava no óleo de soja. Almoçava e passava na casa da amiga. A escola ficava a uns quinze minutos a pé, íamos juntas todo dia, tagarelando. A Bruna era alta com as pernas compridas, ficava linda de calça jeans, dizia coisas engraçadas quando o assunto não era o namorado ciumento. Ela só podia passar o recreio com ele, não podia usar decote nem pintar a unha. Davam amassos escondidos na escadaria ou no portão, ela fechava o olho. Foi nessa época que começou minha obsessão por bocas, as de beiços finos, as de beiços carnudos, beiços descascados, esbranquiçados, seca ou molhada, só tinha olhos para boca e beijos alheios. Enxergava de longe o sorrisinhormonal de quem tinha beijado. O batom na boca dos meninos, quando meninos ainda não usavam batom. Via aquilo com apetite, mas não beijava ninguém. Comia uma mini pizza ou um pão com molho na cantina pensando como seria beijo sabor orégano, e nunca que deveria ter cuidado pois ia acabar babando no uniforme branco com tanto molho de tomate. Terça-feira minha última aula era de geometria e a Bruna ficava até as duas no laboratório de química, eu voltava sozinha. Naquela semana, o namorado dela me encurralou na saída, acariciou minha nuca e falou que se eu fosse menos peluda ele me beijaria. Cuspi na cara dele. Ele reagiu me agarrando com força. De caderno e estojo na mão, tentei afastá-lo e acabei rasgando a boca dele com o compasso. O sangue espirrou nas camisetas. Até hoje não sei que história ele contou pra Bruna que nunca mais falou comigo, mesmo depois de ouvir minha versão.  Bruna, por onde é que andarás?

 

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Falando em paladar, foi minha amiga que disse. Na Suíça, no cinema, a pipoca é doce e também se come sorvete, toblerone e baldes de pastilhas confeitadas de chocolate. A pipoca salgada é murcha porque vende menos. Eu sofreria, como faz pra tomar sorvete no escuro? E a quantidade de açúcar que cabe num balde de docinhos? Aquele pico de serotonina e dopamina, a língua entupida, o beijo de bafinho agridoce. Dantesco. Prefiro coisas salgadas. Por exemplo, comer um pastel sentada no banco que fica perto dos caixotes de feira expostos e bem organizados. Na quitanda & lanchonete do Geraldo. Todo dia aberto salso escuro úmido marrom esverdeado sem janela dentro. O cheiro das coisas é mais forte onde o sol não evapora, o das pessoas é acebolado nos dias de sol, a blusa grudada transparente peito cintura umbigo evidentes. Quente, caliente, caldo de gente, penso no beijo suado, corpos trançados molhados de salmoura humana. Depois uma água de coco, um banho e um cochilo. Lá no seu Geraldo tem um salgueiro na calçada, circula muita gente. Variedade e diversidade, essa agradável dupla de possibilidades. Dia de semana, na hora do almoço, esquento o banquinho. Gosto da prosa de balcão, mas gosto mais de ficar observando a faixa etária viva de quem prefere sacolão ciranda feira delivery orgânico brigadeiro vegano de colher. Sei que quem vem gosta de levar hortifrúti fresco nas sacolas reutilizáveis, e caminha com passos determinados. Contracultura, criatividade e sensibilidade diferente, essa com certeza é uma turma diferenciada, inovadora, com muita vontade e convicção de poder mudar o mundo. Independente e soberana. Que prefere enrolar seu próprio tabaco. Peço um café coado na xícara e alguém senta ao meu lado. Me pede pra passar o açúcar, passo, os olhos no sorriso grande rente inabalável, posso até adivinhar o hálito mentolado. Beijos de cinema deveriam ser eternos.

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Tempo, esse alimento que tanto cobicei e do qual, nesta minha nova encarnação, estou farta. Pura falta de rumo, embora não saiba de nada que me tiraria de onde estou agora: estou presa é neste corpo. Minha mãe já tinha me alertado, nunca mais somos as mesmas depois do segundo tempo. Só há pouco entendi que ela se referia a nossa demência perante a deterioração da sustança. Pois bem, aqui tem quarto cama travesseiro cadeira quadro natureza-morta barata armário espelho livros salão de jogos capela jardim nada meu. Alguns amigos, roncos e peidos sem fim e, pasmem, beijos de boca banguela oca absorvente feito buraco negro. Comigo, aviso logo, só se for de dentadura. Impossível abrir mão de gozos, mais ainda quando escassos. Ontem foi meu aniversário, tomei banho e acendi uma vela que roubei da capela. Acendi e não apaguei, não sou boba de desperdiçar divertimento. A chama em movimento me lembrou que ainda estou aqui na paz da escolha deste momento, mais que nunca inadiável. Até porque a moça do turno da tarde num instante veio estragar tudo, entrou brava, querendo me beliscar. Não pode não, onde foi que a senhora achou fogo?! Aaai! E na outra mão, o copinho. Toma, tomo. O líquido cor-de-rosa de sabor simulado horrendo denso. Engoli e fiz o de sempre, resmunguei, deitei, me cobri e fechei os olhos pra imaginar, enquanto posso, o que não posso mais ver.

 

 

Canções que acompanham:

 



Cris Oliveira nasceu em 1974 na cidade de São Paulo e é bibliotecária, tradutora e poeta. Autora de Escova de Dentes (Paraquedas, 2023).

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