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  • Cris Oliveira

Um caso de placa na porteira

Uma tarde depois do almoço, quando ainda morava em Genebra, a caminho do lago, vi algo muito interessante: uma frase numa placa numa porteira. Nem sempre frases perdidas, expressões e construções idiomáticas, nem mesmo linguística, tradução ou sequer idiomas interessam a todos, eu sei. A sonoridade parece interessar mais, os sotaques, as gírias. Os biquinhos que gostamos de fazer para imitar os franceses, os trejeitos e vogais abertas para imitar os italianos, o r retroflexo do inglês e do caipira. Pois bem, eu meio que persigo muito tudo isso, fascinada pelo que pôde, pode e poderá (e poderia) a língua livre e viva.

 

Costumo sair para esticar as pernas faça chuva ou faça sol, tenho um pedômetro e a meta mínima de dez mil passos diários. Desde que meu cachorro faleceu, tenho ido só. Sozinha, como canta lindamente Zélia Duncan, observo melhor as cores. Na verdade, olho mais pra frente e pros lados do que em direção ao chão, como quando observava cada cheirada e levantada de pata do meu amado amigo.

 

Talvez a tal da placa já estivesse ali antes, por onde sempre passava, eu acho que sim. Genebra é uma cidade que tem ares de metrópole com roça. Já contei que a placa estava numa porteira; do outro lado só se via o que parecia ser uma plantação de colza. A curiosidade não há quem cure (Tom Zé <3) por isso parei para ler e tentar entender o que de tão proibido teria acolá.

 

La Commune décline toute

responsabilité pour

quiconque entre

dans cet espace privé

 

“A Comuna não se responsabiliza por ninguém que (quem quer que) atravesse esse portão”, foi a tradução livre que fiz na minha cabeça. Intrigada, continuei minha caminhada imaginando alguém pulando a porteira e sendo atacado por animais selvagens. Fiz toda uma história faroeste texana na minha cabeça, jamais vu (possível antônimo de déjà vu, mais conhecido como aquela sensação de já ter visto algo mas não lembrar) naquelas terras helvéticas. Não que eu saiba, não nesses tempos. Visualizei meu pai assistindo faroeste espaguete nos anos 80 na televisão. Cheguei a reproduzir mentalmente a onomatopeia bang bang e ri sozinha. Mexer com linguagem e literatura faz isso de divertir uma pessoa, recomendo. Mas o mais relevante para este caso, naquela bela tarde de outono, foi que encasquetei a palavra quiconque da placa.

 

Em francês, o pronome indefinido quiconque vem de qui que onques, do latim quicumque. É uma palavra deliciosa de se pronunciar, com som de dois Q mudos feitos na garganta ali como se não quiséssemos engolí-los, como se tivéssemos engasgado, como se as vogais de cada sílaba estivessem amordaçadas:

 

q’ con q’

 

Em português, o equivalente de quiconque é a locução pronominal quem quer que em suas três palavras (por quê não quemquerque não sei). Se traduzirmos literalmente qui que onques, teríamos quem que jamais ou quem jamais. Ou ainda qualquer um. Se negativo, ninguém.

 

Quiconque pense fait penser - escreveu Voltaire, que inclusive morou em Ferney-Voltaire, França, pequena cidade coladinha com Genebra e cujo museu tem uma figueira que dá figos docinhos em agosto mais ou menos. Quem quer que pense, faz pensar.

 

Nas voltas da busca de sentido, sem sentido, como se estivesse lendo um bom Shakespeare, fui para o inglês. Quiconque é whoever, palavra essa que tem origem desconhecida, como muitas palavras no seu jeitinho inglês-germânico de ser. O ever parece ser uma outra linda história que gostaria de aprender.

 

Na peça “Do jeito que você gosta” (As you like it),  Shakespeare reproduziu uma frase do título de um poema de Christopher Marlowe: Whoever Loved That Loved Not At First Sight (reparei nessa construção maravilhosa com loved that loved not). No francês, usando quiconque: Quiconque doit aimer aime à première vue. Em português, mais literal: Quem uma vez amou que não amou à primeira vista (aqui a construção traduzidinha: amou que não amou). E ainda em português, numa tradução mais livre: Quem pode dizer que amou sem ter amado à primeira vista (nota: não discutamos sobre amor com quiconque seja poeta).

 

Bem, já com a palavra quiconque mais assimilada, ontem voltei ao mesmo lugar da porteira para tirar uma foto da tal da placa. Eis que finalmente entendo o contexto. Focada na palavra quiconque, tinha ignorado o título do cartaz: centre de voirie. Voirie, voir et rire, me diverti. Um centre de voirie é um lixão controlado, um aterro. Na Suíça romana ainda se usa essa palavra assim, enquanto que na França, voirie parece ter somente a acepção de via de circulação. Voirie como aterro, no país do croissant, é centre de tri (triage).

 

Contexto, temática, direcionamento, apelo, spoiler e até estrago, um título não pode ser mais evidente do que o próprio título. Um título pode ser infalível em negrito ou caixa alta! Dizem que há escritores que começam a obra pelo título e que há quem escolha livros pelo título. Aparentemente, há quem fique presa nas linhas de um texto e volte para o título depois. Touché.



a tal da placa



Cris Oliveira nasceu em 1974 na cidade de São Paulo e é bibliotecária, tradutora e poeta. Autora de Escova de Dentes (Paraquedas, 2023).


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2 Comments


Thiago Hérick de Sá
Thiago Hérick de Sá
Feb 27

Colza - que não é canola - pode também ser chamada de couve-nabiça, que, aliás, prefiro. Nabiça parece nome de rainha africana - a Rainha Nabiça, madame Nagô, guerreira de Abeocutá, falante de Oió, do Reino Iorubá.

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Cris Oliveira
Cris Oliveira
Feb 27
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poesia pura, Thiago!

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