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  • Jim Duran

Uma conversa em três atos com Ikaro Maxx. Por Jim Duran



Ato I


1.     Como e quando a poesia surgiu para você?

 

De onde surge a poesia na vida de alguém? Eis aí uma genealogia nível hard: rastrear o exact moment (quase que um “mito fundador”, rs) em que tal semente foi plantada em nosso espírito...

Não tenho uma ideia muito definida de quando tal momento ocorreu, por assim dizer. Digo isso levando-se em consideração de que em meu background parental - a minha história familiar mais imediata & direta – não havia “poetas” ou mesmo “artistas”: vim de um lar de simples trabalhadores, de “empregados” do Estado & de empresas privadas, embora com certo espírito de “empreendorismo” presente.

Devia ser muito pequeno – uns 3 ou 4 anos – quando tive consciência de que sonhava. (O que é sonho? O que é realidade? – para uma criança imaginativa uma coisa é praticamente indistinguível da outra.)  Não propriamente “consciência”: a experiência fazia perceber-me certas qualidades do mundo que antes não me eram tangíveis, concebíveis ou vistas. Um dos primeiros sonhos de que me lembro – com uns 3 anos de idade, talvez? – foi um em que eu sentia a minha cama lentamente levitando do chão & saindo – como? Sabe-se lá... – pela janela do quarto & dando um passeio comigo até a lua. A lua era esse enorme pedaço de marshmellow acolhedor & lá havia outras crianças que brincavam & dançavam & corriam & cantavam. E havia crateras escuras, perfume & muita música – quase como se fossem pequenos “inferninhos” do centro de uma megalópole como São Paulo ou New York, uma versão peculiar de Woodstock infantil. E no outro dia eu acordava na minha mãe em estado de maravilhamento completo. Absolutamente atordoado pelo vôo, pela experiência, pela trip aos confins da noite (como poderia dizer Louis-Ferdinand Céline).

Costumava escutar & estudar a chuva pensando em todos os sons que ela escondia, a soma das vozes, ruídos & acordes que ali se mostravam & dissipavam em meu espírito uma quase cristalina selvageria embevecida, não-declarada, trazida a mim de algum rincão de ilegalidade, o nascedouro de algo inabsorvível, incapturável: a minha alma mesma. Um caminho no âmbito selvagem. São sensações assim que – mais ou menos – nos teletransportam a uma sensibilidade do que denominados “estados poéticos”.

 Os sonhos, a chuva, as vozes inclassificáveis: talvez os meus primeiros professores de poesia? os primeiros xamãs a tangerem a harpa do meu espírito?

A poesia me veio de tantos lugares & de tantos modos que foi quase uma fatalidade inconsciente. Mal sabia eu que o sonho era uma das faculdades mais poéticas – e plásticas – presentes na cognição & na estrutura psíquica humana primitiva. Muito embora, como já sabemos & os estudos apontam, não seja um fenômeno psíquico exclusivo ou “puramente” humano. (E “O Oráculo do Sonho”, livro do Sidarta Ribeiro, é um apanhado lindíssimo com vários estudos neurocientíficos/biológicos/antropológicos a respeito, além de relatos sobre a função dos sonhos dentro de contextos mitológicos, espirituais e culturais de vários povos ao longo da história & do planeta).

Ainda sem saber bem o que era poesia - & o que era um poeta – sentia-me uma criança, uma criatura, um ser excluído & apartado de todos os demais... – sempre longe, longe demais de tudo & todos!: mesmo de meus irmãos, primos, amigos, colegas de escola. Esse sentimento de isolamento, alienação, pathos da distância, alheamento, não-pertencimento, não-adesão-radical-à-realidade, introspecção mezzo-angustiada-mezzo-serena, incompreensão & mesmo perseguição por meus pares (na escola, primariamente, depois nas ruas, na sociedade, pelo Estado, pelos “outros” artistas, etc) levou-me a desenvolver uma sensibilidade & um psiquismo extremamente delicados & hiperativos: fora a minha habitual & incomum capacidade de mergulhar fundo em devaneios, não ficando lá muito responsivo aos estímulos & repetições que estruturam & seguram o fluxo de merda deste mundo.

Todos esses fenômenos me levaram a uma espécie de insanidade crônica que me colocaram em diversos perigos físicos, mentais & espirituais. O meu descompasso com o mundo/a sociedade/ a cultura vigente/a realidade acabou por encontrar uma forma representável por meio da música, particularmente a cultura do rock. Acho que foi a primeira expressão – além do desenho, em que realmente me “revelava” um “prodígio” já aos 6 ou 7 anos! – em que me senti mais “à vontade” como num lugar de completa nutrição & que me fez entender mais esse meu “deslocamento/descolamento”.

Lembremos: fui uma criança nascida no ano da abertura democrática “oficial” – literalmente um vento de mudanças & transformações: o país viveu amordaçado sob esse sufoco que foi a ditadura por vinte e um anos seguidos! Dos anos 80 é claro que as minhas memórias são sofríveis, instáveis como a boa “ilha de edição” (como já dizia o Waly Salomão) que é. Então, a maior parte de minhas lembranças mais “confiáveis” são daquela saudosa década de 90 que foi a década híbrida em que o analógico começava a se dissolver na erupção tecnológica do mundo virtual, da hiperconexão & da volatilidade das coisas, do cibernético, bla-bla-bla. Uma variedade de conceitos, produtos e caminhos neurais revolucionários. Esse ponto de fissão diz muito a respeito do que veio depois... Contudo, como falava, foi a década em que ocorreu a última “revolução do rock” (o então chamado “grunge” de Seattle) enquanto um gênero que marcou-se como a autêntica expressão de uma juventude (ok... vamos lá... branca, classe média, etc... – majoritariamente: e isso a despeito do rock & suas origens – blues, r&b, jazz, gospel, spirit... – serem de expressão negra, como bem sabemos...) numa pretensa universalidade que colocava a rebeldia, a angústia existencial & suas complexidades no palco da expressão artística de massas.

Essa parte de minha formação – a musical – veio totalmente de casa! Meu pai tinha sistema de som AKAI com altos falantes enormes, vinil, deck de fitas K-7, etc. A coisa toda! E dentre sua coleção generosa de vinis contavam: Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Yes, Rush, Black Sabbath, Led Zeppelin, Pink Floyd (fase pós-Syd Barrett), Focus, Genesis, Joan Baez, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Queen, Mutantes, Cream, The Who, Elton John, Grateful Dead, Joni Mitchel, Jethro Tull, David Bowie, Eric Clapton, The Faces, Yardbirds, Peter Frampton, Alice Cooper, Aerosmith, Neil Young, Guns’n’Roses, etc. Na parte da música brasileira: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Alceu Valença, Fagner, Belchior, Gal Costa, Bethânia, Hermeto Pascoal, Barão Vermelho, Sivuca, Nenhum de Nós, Engenheiros do Havaí, Gonzaguinha, Xangai, Elomar, Marina Lima, Chico Buarque, Rita Lee, Elis Regina, Cássia Eller, Baden Powell, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, etc. Além disso, uma extensão coleção de música erudita, blues, jazz, etc.

Então, essa foi a minha primeira fonte! O início de minha nutrição musical, artística.

Porém, como geralmente ocorre, o meu gosto pessoal ampliou-se e, naquela época, vendo e lendo os encartes dos vinis e dos cds – principalmente os de rock – eu já “sacava” que aquelas pessoas não eram “cidadãos normais” ou pessoas “””comuns””” do dia-a-dia! (Sim, é claro, eram seres humanos falhos & banais como cada um de nós – sem “endeusamentos” desnecessários, rs – mas, vivam a vida de outra maneira, & era isso o que mais me interessava & “fisgava”: a atitude diante da vida!) Claro, naquela visão ingênua, romântica, de uma criança impressionável, digamos. Em uma imagem: O Slash com aquela cartola, calça jeans rasgadas, jaqueta de couro preto, brincos & piercings, cabelos cumpridos, tatuagens... e uma garrafa de Jack Daniels junto com um pacote de Marlboro vermelho! (“The whole package.”) Entende? Rssss. O poder - & a sedução, é claro – da “imagem”! [Claro que eu não sabia ou entendia na época como a Indústria enlatava e vendia essa “rebeldia de plástico”, essa rebeldia poseur, etc.]

A divergência em relação ao gosto transmitido pelo meu pai (e mãe) se deu com as apresentações do Nirvana e do Red Hot Chili Peppers no Hollywood Rock em 1993 (eu tinha de sete para oito anos na época) – aquela em que o Kurt Cobain bateu uma punheta & cuspiu nas câmeras da Rede Globo. Lembro que a resposta do meu pai à ocasião fora bastante agressiva & preconceituosa: “essa bichinha drogada!” & uma saraivada de impropérios que não era lá muito comum escutar ele falando em casa na nossa frente. Um ano e alguns meses depois – um dia depois do meu aniversário – chegava a notícia pela imprensa do suicídio do cara. Com tudo aquilo que se falou sobre o “Clube dos 27” acabei chegando ao The Doors & Jim Morrison, que era outra banda que o meu pai não “curtia”!

Foi ao descobrir as letras do Jim, suas entrevistas (foi ele que chegou a dizer que “entrevistas são uma nova forma de Arte” - & eu não discordo!), pontos de vista & posicionamentos diante da realidade & da vida que eu acabei descobrindo o que seria a poesia! O que era um “poeta”: acredito que deva ter sido a minha primeira “referência” mais ou menos “palpável” de alguém que se dizia ou se assumia poeta. A poesia, ali musicada, aos poucos foi se descolando totalmente do medium musical & aparecendo na forma de página ou de declamação. Estamos aí no começo da adolescência. (Era tão ignorante & ingênuo que achava que só os “gringos” é que eram poetas! Vejam só! Tsc tsc...)

E, de algum modo, como já nos dizia Paulo Leminski, na adolescência – por assim dizer – “todo mundo é [meio] poeta”, porque na verdade todo mundo – salvo raras exceções – é meio “besta”, meio “babaca” ou meio “perdido”. Ou todas essas coisas ao mesmo tempo, vai ver, rs.

Até então parecia algo “meio” “abstrato” sempre que, de algum modo, as palavras “poesia” ou “poeta”, apareciam fortuitamente em minha vida: sempre em fuga, em transição, nunca ficando para ser examinadas ou analisadas com profundidade, nunca se pondo numa posição vulnerável de tomar a forma de um conhecimento concreto.

Acabei pegando na mão dessa palavra & sendo sequestrado para um monte de histórias & aventuras que viraram o que sou, faço & vivo hoje já há bastante tempo.

 



2.    O poeta é um ser tentacular? Só a poesia supre ou ele se arrisca em outras áreas?

 

Há tantos tipos de poetas quanto existem formas de vida e ideias no mundo. A própria vida se desdobra e acontece como um milagre poético que até o instante nem a Filosofia, nem os Mitos, nem a Ciência ou o Ocultismo conseguiram, de fato, explicar e desnudar satisfatoriamente de modo a expor cada uma das infinitas arestas de seus Mistérios. Há alguma episteme capaz de jogar luz absoluta – dissipando de uma só vez toda sombra – sem também aí não projetar sombras e pontos cegos, formas obscuras e indefiníveis de sua própria inconsciência? E não seria a Luz absoluta, por sua vez, um regime de imposição dogmática do intelecto sobre todas as outras faculdades humanas e animais?

É muito capaz que o poeta seja ou se torne tentacular à medida que se depara com certas coisas/fenômenos, tentemos aqui abordar ou enumerar algumas delas: – a diversidade de ordens que enfrenta, as necessidades impostas de fora (pela cultura, pela moral, pela sociedade, pelo grupo social em que nasceu e se desenvolve, pelas Leis, pelo Estado, pelo Trabalho, pela “adaptação à sobrevivência, etc) quanto “de dentro” (Espiritualidade, “Natureza”, Instintos, lapsos de subjetividade, Formas do Ego, etc – boa parte também importada das correntes de ideias, valores & costumes que circulam como “oxigênio e moeda” simbólica), as exigências, expectativas & as contradições irresolutas de um mundo que tanto oferece oportunidades quanto as oblitera incansavelmente. É como se o mundo se fizesse um palco de areia movediça ou uma ponte de vidro fino – delicadíssimo – capaz de romper ao primeiro sinal de estremecimento & revelar o Abismo como seu fundamento sem fundo.

Muitas vezes a tentativa de agarrar “tudo” só nos deixa no Nada, no vácuo das ausências, com os olhos a verem navios-fantasmas.  Contudo, há ainda a utopia da tentativa – de que com a língua, com a linguagem (& a imaginação, o pensamento, a sensibilidade, etc), com o uso mágico, desafiador, transgressor dela(s), possamos ser capazes de atingir um nível de consciência & comunicar esses níveis mais profundos a outros para fazer de nossa transformação interior um caminho de transformação muito maior do que nós mesmos. E tornar o poema – ou o texto – tanto uma ponte quanto a própria experiência que acontece dentro de um Outro para que isso seja o suficiente – ou uma parte indispensável, me parece – para um novo Despertar, uma nova Cura, uma novo Estado de Ser e de Devir no presente da vida que acontece a cada instante & que nunca morre, sempre & sempre brotando & emergindo reluzente, loquaz, revolucionário!

Nada disso, entretanto, pode ser possível sem algum grau de risco, de perigo, de atirar-se de corpo-espírito no fogo duro & no fel amargo dessa experiência para se experimentar por dentro esse rasgo alquímico, essa cicatrização hermético-hermenêutica capaz de atar os nós mais imprevisíveis & formar a partir daí um novo pacto com a Realidade, com os Acontecimentos densamente imprevistos da vida.

Nisso o poeta é capaz de lançar mão de todos os recursos que possui - & também os que não possui (nessa aposta cega com o devir!) – para nutrir-se nesse processo & fazer (auto)descobertas inventando a cada passo a sua própria história & também uma nova História Mundial ou universal em que valsem todas as diferenças, todas as particularidades, todos os átomos loucos & anárquicos deste corpo indelimitável & inconsequente que é o seu Ser-no-Mundo.  

Das coisas que sempre nos dizem – ao menos era algo que escutei sempre desde pequeno (nestes veios de ser uma criatura nascida & criada no Ocidente, na América Latina na virada do século XX/XXI, numa pontinha na Costa brasileira, numa cidadezinha – capital – mediana litorânea & de espírito provinciânus cuja presença sempre causou interrogações, surpresas & preconceitos em nichos economicamente “”desenvolvidos””): a poesia é inútil, o poeta é um ser-de-vento. Eles dizem: “poesia não é trabalho, não se vive de/não se subsiste com ‘Poesia’.” [Era como dizia o Piva: desde que Platão expulsou os poetas da sua República ideal, todos os poetas são “marginais”. No léxico favorito de muita gente nos tempos atuais: os poetas são “vagabundos” ou “sonhadores” que não tem a mínima noção ou capacidade de “se virar” no mundo real.] 

Mas, e todo o resto? Vai me dizer que tudo fica simplesmente de pé?

Ora, a religião é uma “ilusão” unificadora, mas a Ciência é quem organiza, estrutura & mantém a vida material(ista) funcionando como uma “máquina bem azeitada”. Com isso, a atual sociedade – que é fruto de toda uma história em que o Ocidente fabricado lá nos Gregos & Romanos & pela Igreja Católica, etc, “colheu” os frutos de suas violências, rapinagem, maquinações & tudo o mais...  – hierarquizou & reduziu a vida a um enredo de papéis, hierarquias, “códigos de conduta”, instituições, valores, normas, tipos-padrões, “ideais”, funções econômicas maximizadas & pervasivas em cadeia que alcançam do mais infinitesimal da psique até as maiores & mais nobres realizações de nosso tempo numa vida revestida por um materialismo ocupado em produção & consumo de mercadorias & um hedonismo hipnagógico, imagético & falsificado.

E tudo o que eles dizem é: faça parte disso ou... seja massacrado – seja um dos nossos (& consiga algumas migalhas de nosso rico, perfumado & lindíssimo sistema de Sobrevivência & Aptidão dos Mais Fortes) ou sofra as piores & mais temíveis consequências possíveis. 

A poesia não poderia ser em nada tirana como o é o modelo econômico capitalista acelerado pelo fascismo, pelo ecocídio, pela hierarquia machista-patriarcal & pelo controle social mediado pelas tecnologias que esvaziam a alma numa disputa narcísica de território & colonização afetivas.     

É verdade, não se vive só de poesia: muito embora o sistema tente de toda maneira tornar a experiência do consumidor em uma espiritualidade prèt-a-porter ou uma experiência sinestésica com ares de sutileza poética, jamais conseguirá chegar à fonte secreta de todo charme humano, a sua capacidade de criação poética, a sua inspiração mais absoluta! A indústria quer porque quer criar uma ilusão de “aura” (aquilo que o Walter Benjamin já havia denunciado como perdida em tempos de capitalismo industrial – a autenticidade & unicidade de uma experiência não-mediada pelo Poder, pelo Capital, pelo Lucro, etc) & dar um verniz de “poesia” no ato do consumo consciente, por exemplo. (Oba! Viva o Capitalismo Verde! Viva o Capitalismo Inclusivo! Urruh!) Muito embora seja muito melhor – pensando em escala global – um consumo mais consciente do que a depredação & proliferação da sucata & destruição de recursos finitos & limitados que ainda são uma infeliz & monstruosa atualidade.

Ainda assim, muito das minhas percepções, vivências & “crenças” a respeito da poesia vem de um outro lugar, uma ética ou estética, digamos, em que certa noção de marginalidade (até de “autoexclusão”) – mas, um marginal talvez até meio dandy, meio terrorista, meio surreal(ista), pode-se dizer – alia-se ao inconformismo & uma revolta capaz de mobilizar o agenciamento do inesperado, das insurreições mágicas, da libido transgressora rompendo couraças & tabus, da provocação em estado catártico que mobiliza o corpo em sua totalidade existencial, ontológica & política.  

A vida sem a poesia seria não apenas um massacre humilhante & sem apelo em uma imanência cortante como caminhar descalço sobre cacos perfurantes, mas a pena num cárcere em que fomos totalmente privados da possibilidade de sonhar. E, consequentemente, de “concretar”, para parafrasear o saudoso Manoel de Barros. 

 

 

3.    Quem foi que fez sua cabeça com poesia? Que autor(a)?

 

Acostumei-me a dizer que a minha primeira delinquência/trapaça poética foi motivada pelo Charles Baudelaire!: um pequeno exemplar – da Martins Claret, rs (acho) – de “As Flores do Mal” me encarava numa estante na sala do diretor da escola em que estudava. Num momento de distração e repentina saída dele do escritório eu resgatei-o daquela sóbria pequena biblioteca pedagógica – certamente atraído e curioso pelo título – e coloquei-o dentro da minha calça. Folhei-o escondido em casa como fosse um pirata que tivesse roubado um tesouro. Podemos dizer que ele meio que foi o “Moisés” que abriu o “Mar Vermelho da Maldição” para mim - &, consequentemente, para toda a minha vida. Ele, Charles Baudelaire, o ariano (que nem eu!), a “criança do zodíaco” inauguradora dos [tortos] caminhos, detentor da “Chave dos Campos”!

No mesmo período – estou falando de 1998 para 1999 – aprendi a “sofrer” e a lidar com minhas pulsões suicidas ao tomar conhecimento de “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe (estava passando pela crise espiritual que me legou um ateísmo & formas mais cínicas & “niilistas” de observar tudo). “Die Leiden des jungen Werther” foram as primeiras palavras que aprendi a falar em alemão, já naquela época! O que hoje se chama “sofrência” já estava toda liricamente arquitetada aí: essa maldita romantização de quem se “mata” – ou pior, mata! credo! – por amor! O “enfirulamento” do sofrimento, da paixão & da afetação! E ah, como eu MORRIA pelo amor, como eu era um maldito & ingênuo romântico até a última fibra do meu corpo! Tudo isso estava próximo demais do platonismo afetivo para eu não sentir que havia algo “sedutor” naquelas enfatuações & desmaios agônicos & desequilíbrios & formigamentos eróticos que beiravam à autodestruição. [Veremos que em breve um martelo bigodudo (“É um pássaro? Um avião? Não: é o übermensch!”, rs) - & um realismo experimental bem despudorado – iria quebrar todas & cada uma dessas ilusões, rs.]

Bem, eu tinha 14 anos & era um adolescente de feições andróginas – cabelo grande, pele lisa (isso antes das espinhas virem com tudo & “destruírem” minhas feições suaves de menino-anjo), tom de voz suave – & que já manifestava em meu código de conduta, vestimenta & comportamento, uma atitude rockeira & punk-rocker alimentada por uma visão romântica de delinquência juvenil (que ainda inspira poemas & visões, embora não tanto como antes & nem seja o meu prisma definitivo – thanks Satan!). Vale lembrar que à essa altura na escola eu já tinha atravessado todos os infernos do bullying, da violência psicológica, da tentativa de estupro coletivo durante um campeonato estadual de Futebol de Salão (abandonei o time logo em seguida & evitei as aulas de Educação Física por PÂNICO), da humilhação pública, das ameaças de surra & intimidações de todos os tipos por valentões & até por covardes amparados por valentões armados que faziam parte de gangues de rua. Eu tinha irmãos que eram protetivos (apesar de em casa quebrarmos o pau uns com os outros!), mas nada poderia me amparar diante de tantas & tamanhas ameaças. O peso psicológico de tudo isso foi aterrador para mim... tanto é que pouco depois tentei suicídio pela primeira vez me dependurando da varanda do apartamento em que minha família morava. Tinha deixado bilhete de despedida & tudo. Meus pais me levaram a uma “clínica de repouso”, etc, colocaram um profissional da psiquiatria para tentar me “destravar”, tudo isso. Eu tinha me transformado numa concha hermeticamente fechada, inacessível. Como aquela metáfora do filme The Wall em que o protagonista Pink constrói um muro ao redor de si para se apartar constantemente de sua fonte de sofrimento: o mundo exterior em si e por si. O estigma da loucura, meus ataques antissociais dentro & fora de casa, minha misantropia absoluta ameaçavam o meu espaço existencial. 

Na escola, nas aulas de artes, começava-se a falar superficialmente sobre as vanguardas artísticas do século XX e eu vi no dadaísmo, no surrealismo, no expressionismo e no futurismo, o tipo de angústia e desespero que eu sentia pessoalmente corroer-me por dentro em minha própria existência. Ainda que eu não os soubesse pronunciar – e menos ainda escrever – os nomes ficaram em meu subconsciente: Francis Picabia, André Breton, Hans Arp, Max Ernst, Frank Wedekind, Kurt Schwitters, Salvador Dalí, Tristan Tzara, Hugo Ball, Marinetti, V. Maiakovski (bem se vê que naquela época não se citavam as mulheres incríveis tais como Emmy Hennings, Leonora Carrington, Hannah Höch, Remédios Varo, Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, Mina Loy, Frida Kahlo, Joyce Mansour, etc, etc! Que infelicidade e brutal injustiça!)... E junto deles os nomes de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, além do inconfundível bandidão do Marquês de Sade. E os românticos ingleses assoberbados e revolucionários, Byron & Shelley (que dupla!) por um lado e o dândi Oscar Wilde por outro.

Foi nesse filão dos “poetas malditos”, primeiramente, que senti bater em mim um diapasão de proximidade, algo/uma sensação mais semelhante a uma “identificação”. Uma vez que eu já àquela altura me sentia um renegado, um proscrito, um indesejado socialmente – um pária, um tumor social, um libertino – e que já havia sido expulso (ou auto-catapultado) das crenças fáceis, dos dogmas e leis da Igreja, do catolicismo & de toda a hipocrisia dominante na sociedade que fala tanto em Amor & põe em prática, indiscriminadamente – a maior parte das vezes bem discriminadamente, é claro –, o Ódio... o que haveria eu, então, de ser? A que(m)/quê “serve” o meu ser?  Quer dizer, levando-se em consideração tudo o que falei acima sobre minhas experiências de perseguição & estigmas já na infância & começo da adolescência, quer dizer que isso – essa excrescência despudorada de violência, opressão, categorização, hierarquização, desamor, privação, estereotipização, etc – era ser um “homem”, um “ser humano” & agir assim - & aceitá-lo sem maiores questionamentos - era estar apto a fazer parte da sociedade? Então, eu – que não me sinto parte & nem me identifico com nada, absolutamente nada disso! – prefiro renegar tudo & me tornar um desertor da sociedade, um demônio inumano!  Que eu seja então o Grande Maldito, o Supremo Doente, o “Inimigo” declarado, pois! Um tipo de “sabedoria ao avesso”, uma forma de xamanismo hedonista que esgota o mal para encontrar o máximo bem & trazer uma (in)consciente cura universal.

Na Filosofia – que me chegou rapidamente por meio do contato com a poesia, a arte e alguma coisa de política, psicologia, marxismo & anarquismo que já começavam a me interessar – me vieram então Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus - o existencialismo de um modo geral – Sören Kierkegaard, Karl Marx, António Gramsci, Erich Fromm, & Friedrich Nietzsche – claro, tinha que ser! Aquele de quem se disse que seria como que “um punk chegando no Olimpo metafísico & dando o dedo médio os deuses & deidades do platonismo ocidental...”

Do campo do misticismo, ocultismo, satanismo, xamanismo, taoísmo, gnose (etc.) me vieram muitas coisas... como William Blake, o ensaio “Portas da Percepção” e “Céu e Inferno” do Aldous Huxley, Roso de Luna, Stanislas de Guaita, Madame Blavatsky, Jiddu Krishnamurti, Aleister Crowley, Alan Watts, Paramahansa Yogananda, Teilhard de Chardin, Éliphas Lévi, outros tantos e alguns romances do Carlos Castañeda, é claro, rs.

Então, nesse primeiro momento, os autores que mais fizeram a minha cabeça eram aqueles que a sociedade não podia “tolerar” – os encarcerava, os “marcava” com o ferro & a foice da incompreensão, os proibiam, os boicotavam, os ofendiam, os taxavam de loucos, bandidos, libertinos, malditos, revolucionários, rebeldes, metidos, “gênios”, “livres”, seja eles (ou elas) quem fossem! Eram os autores - & autoras – perigosos para suas próprias épocas (& alguns/algumas mesmo depois), aqueles que ousaram dizer a verdade que todos calavam ou ninguém tinha a ousadia de dizer, amedrontados demais pelas consequências ou pela punição por ousar dizer a verdade & nada mais que a verdade.

Por volta dessa época, mais ou menos, comecei a beber & fumei o meu primeiro baseado. A partir daí veio todo o “resto” – o que já é bastante coisa!




Jim Duran, formado em Letras, fez teatro, trabalhou com reportagens, participou de alguns projetos, e hoje bate papo. instagram: https://www.instagram.com/jim.duran_/

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